Change Blindness
2005Change Blindness
Sheet steel, 4000w (light), sensor, bags of sand and tar
800 x 500 x 400 cm
Coll. Fundação EDP
Muro, espelho, ecrã
Vasco Costa enfrenta os espaços sem drama nem receio, dominando os seus conceitos e determinado a desconstruí-los. Essa é uma evidência da obra apresentada no Pavilhão Portugal Centro mas pode ser entendida em muitos outros lugares onde o artista interviu e em obras que realizou, integradas ou não em espaços arquitectónicos ou mesmo paisagísticos específicos. Neste caso particular VC confrontou-se com um espaço que, temos vindo a ver, é de forte presença arquitectónica, difícil de contrariar nas suas linhas de afirmação a nível do desenho, da volumetria ou da simbologia. O modo como alcançou esta solução foi criando um grande plano cego que, cortando em diagonal o espaço vazado do interior do pavilhão, se mostra capaz de contrariar os planos de fundo e as linhas de desenho contra os quais se ergue.
O conceito de contradição pode tornar-se evidentemente operacional no contexto desta intervenção de VC. Todo o processo de trabalho que conduziu à peça apresentada foi conduzido por esse sentimento de luta contra uma realidade física que se foi tornando uma luta contra realidades técnicas, burocráticas e, finalmente, mesmo políticas. E a evolução entre a proposição original e final reflete e resolve bem esse embate. O trabalho de VC é um trabalho de ocupação do espaço, de resistência de materiais e de ruptura de significados: ocupação, implica manipulação e modelação do espaço; resistência, é confronto de densidades e experimentação de texturas; ruptura, finalmente, significa transformação de uma coisa (forma, conteúdo) noutra coisa. Um tradicional móvel de madeira penetrado por estruturas abstractas de metal que o separam e o inutilizam, um carro abandonado coberto de alcatrão que, ainda em processo de secagem, vai pingando sobre o solo, um colchão de espuma dobrado sobre si, forçado por correias a manter-se como um nó ou punho, são exemplos possíveis de estratégias de separação de partes, camuflagem ou densificação das formas que VC utiliza.
As peças ocupam o espaço não apenas numa situação estática mas dinâmica, na medida em que absorvem o espaço que as rodeia ou o reflectem ou se expandem nele. Tal trabalho é potenciado através do uso de materiais contraditórios que se repelem ou recobrem, que coabitam em conflito ou se sobrepõem. O que resulta dessa sucessão de operações plásticas é uma alteração de significados que não reflecte um mero jogo de formas mas uma alteração de significados estáticos. ↔ A primeira preocupação de VC, no espaço dado (e escolhido) para a sua intervenção, foi a de criar um apoio visual que se constituísse como ponto de alternância quer em termos simbólicos quer formais. No caso, a primeira hipótese de trabalho foi a da colocação de um tradicional poste de electricidade, em cimento, ligeiramente quebrado na base, erguido numa diagonal incerta, sustentado por cabos à própria estrutura interna do Pavilhão. Esta solução fazia concentrar num ponto-morto do espaço volumétrico do edifício um feixe de linhas que, vindas pelo ar, se agarram a um eixo (o poste) e são assim conduzidas para o chão inclinado da sala. A obra completava-se provocatoriamente com uma presença viva, a de um bando de pombos-correios provenientes de um pombal de que o próprio artista cuida. Esta presença viva, ao invés de completar o programa de um qualquer esforço de ilustração (poste eléctrico-fio-pombo), introduziria uma indisciplina no espaço, não apenas físico mas duplamente simbólico (um Pavilhão arquitectonicamente significativo laicamente sacralizado como espaço de exposições) colocando-o em questão e às obras dos outros companheiros. Tratava-se, enfim, de considerar poste e fios como um desenho linear tridimensionalizado e figurado relativamente estável que os voos individuais e em grupo dos pássaros completariam através de linhas virtuais e que os dejectos materializariam. Estas duas dimensões definir-se-iam em total aleatoriedade dentro da liberdade no controle de um espaço fechado a que se acrescentaria a aleatoriedade dos sons naturais dos animais. Questões técnicas insuperáveis e as medidas desencadeadas pela crise internacional da gripe das aves desaconselharam o prosseguimento deste projecto. Essa mesma paragem acrescenta um valor social e político também à decisão voluntária de travar o processo que poria em causa a integridade do edifício e poderia colocar em pânico a comunidade. A necessidade de uma reviravolta no trabalho levou-o a concentrar-se mais nas questões formais da própria peça mas, embora o seu significado se autonomize largamente do espaço para o qual (ou no qual) foi concebida o seu papel como agregadora da atenção visual do visitante e determinante na definição dos seus circuitos e como desestabilizadora do espaço desenhado e construído. Finalmente, a peça quase surge como oposta à anterior: um grande painel (ver medidas) oferece ao olhar uma extensa superfície metálica apoiada em 4 suportes também metálicos equilibrados por sacos de areia no chão. Trata-se, de facto, da réplica de um grande painel de publicidade exterior cuja escala o destinado a uma colocação na paisagem (de estrada) e torna exíguo o espaço onde realmente surge colocado. Uma das mais valias da peça é a de negar ao visitante que entre no pavilhão tida a superfície destina à inserção da imagem publicitária e comercial ou político-ideológica. O que vemos é toda a estrutura da retaguarda do painel e é essa imagem anulada ou deceptiva (meramente técnica) que nos faz desejar ver o resto, ver a frente do painel, descobrir a mensagem directa do autor que esperamos esteja do outro lado. O que acontece, porém, é que tal imagem, como podemos imaginá-la, desejá-la, não existe de todo. Rodeado o objecto, o painel metálico revela-se nu de imagens figurativas ou outras: nenhum papel colado, nenhum desenho ou pintura directa. Apenas uma massa informe, escura mas brilhante, informe e pastosa mas dando indícios de que irá escorrendo desde o limite superior do painel. Esse movimento adivinhado (e verificado ao longo do tempo de exposição) introduz um suplemento interpretativo à peça relacionando-a com a ideia e prática do tempo dentro da obra constituindo-se como “desenho” ou “pintura” independente da vontade do autor. Era o ritmo de visitantes que, rodeando o painel activava um conjunto de 4 grande focos de iluminação (1000W cada) que acelerava a descida da massa de alcatrão. ao longo da superfície. A intermitência dessas visitas, as horas de fecho da exposição e a baixa temperatura do local e da estação do ano permitiram manter a matéria plástica nos limites dos painéis. Podemo-nos agora interrogar sobre a natureza última desta intervenção. Há uma dimensão provocatória — do espaço arquitectónico e da sua vocação administrativamente determinada como centro de exposições de arte — mas também uma dimensão definida no interior da linguagem propriamente artística e autoral de VC. A peça metálica funciona como muro, na medida em que pode barrar um espaço; mas também como espelho, na medida em que simula ou acentua uma fragmentação do espaço cúbico em prismático; mas nega-se como ecrã, na medida em que não aceita imagens projectadas nem é atravessado por elas, na medida em que nega a pintura como acto de inscrição de imagens e exibe com voluntarismo a matéria plástica como jogo de acasos.
por João Lima Pinharanda
in Catálogo (não publicado) Prémio EDP Novos Artistas, 2005
Pavilhão de Portugal-Centro, Coimbra